Minhas antigas tradições de ano novo

31.12.23

 


Subi correndo o corredor de casa com dois cachorros ao meu encalço, tomando muito cuidado para não tropeçar ou cair, já que o chão e as paredes eram super ásperas. 

Cimento puro por debaixo dos meus chinelos havaianas cor de rosa.

O cabelo armado, sem pentear, em um rabo de cavalo balançava demostrando o esforço daquela pequena subida inclinada. Abri o portão que separava a casa de cima da casa de baixo. Passei pelo quintal da frente já escutando as vozes da velharada.

A última semana do ano era sempre assim, minha vó, mais as cunhadas, minha tia, primas da minha mãe e minhas primas nos juntávamos para cozinhar e deixar tudo preparado para o ano novo. Era um barulho gostoso entre palavras ditas em português no meio do uchinaguchi ao qual eu não entendia.

E ali, todas juntas, fazíamos massas e recheios, nada de comprar já pronto ou à metade do caminho. Lembro das tardes que moía os feijões vermelhos azuki ou o arroz para fazer moti; e como trocava de uma mão à outra quando me cansava de girar a manivela do moedor.

Adorava fazer manju e yakimanju com o selinho em formato de folha. Lembro de como dizia que gostava muito mais de manju branco ao manju que ia ao forno, e sentia que o yakimanju era perfeito para ser comido enquanto jogava the sims no computador com um chá mate leão do lado.

Yakimanju

Anos depois, a família nova da argentina ficou impressionada com a minha capacidade de moldar facilmente os manjus em seu formato, além da rapidez. A experiência é de anos... só não sei quando exatamente comecei a ajudar todo ano novo, é uma daquelas memórias tão antigas que você só sente que sempre fez isso, ou que já nasceu fazendo isso desde que se lembra da sua própria existência.

Não lembro de ajudar a fazer oniguiris, mas sei que todas as outras “tias” faziam, assim como os inarizushis que sempre estavam presentes na nossa mesa. Como eu amava e ainda amo inarizushi!

E não era só comida japonesa que fazíamos para passar o ano novo, minha vó sempre foi responsável por fazer as coxinhas e as bolinhas de queijo, ainda hoje sinto que nenhuma bolinha de queijo se compara com a dela. Eu sempre ajudava a rechear, além de comer os queijos que sobravam. Também fazíamos bolinho de coco, delícia de abacaxi, gelatina colorida...

Com minha tia criamos a tradição de fazer pavê de maracujá, uma receita que, se não me engano, ela tirou de uma revista (quando ainda guardávamos recortes de revistas com receitas interessantes). Sempre quando posso quero levar essa tradição, já fiz pavê de maracujá no Brasil, no Japão e na Argentina.

Às vezes tínhamos carne ou frango na mesa, mas eu lembro mais de toda essa mistura de coxinha com inarizushi, bolinha de queijo e sushi, mas não esses suhis elaborados com mil coisas dentro, era algo super simples, cenoura, pepino e ovo, não era necessário mais que isso. E salada... não lembro de ter comido muita salada, mas sim tínhamos salada russa todos os anos, ou quase todos...

Na noite de ano novo, nós nos reuníamos vestidos de branco e comíamos. Só que, antes de comer, tínhamos um pratinho pequeno com umas tiras de bacon colocadas como raios de sol (que só depois eu fui descobrir que era bacon, porque em casa não comíamos) e no meio um punhadinho de sal, nós pegávamos uma tira de bacon fininha e pequena, colocávamos a pontinha no sal e comíamos, só aí podíamos tocar no restante da comida. Não lembro de brindar ou de bebidas alcóolicas sobre à mesa, mas lembro de ter muita Fanta Laranja e Coca-Cola. Também tínhamos algumas outras tradições de ano novo, como comer romã e guardar algumas sementes na carteira, minha tia com minha prima comiam uvas enquanto pulavam de um pé só...

Ficávamos acordados até depois da meia-noite e íamos dormir, já que no dia seguinte receberíamos os parentes.

Só depois de muito tempo fui entender que era uma tradição japonesa visitar os parentes no dia primeiro, pensava que todas as famílias faziam isso. Nessa mesma última semana do ano, fazíamos vários pacotes de “presente” para entregar aos parentes, era sempre algo mais relacionado à comida não perecível: café, arroz, feijão... às vezes havia coisas como alga nori, caixa de chocolate garoto ou lacta para as famílias que tinham crianças. Eu e minha prima éramos as responsáveis por entregar esse pacote.

Os parentes vinham, alguns ficavam por horas e horas, e outros faziam igual visita de médico, mas sempre deixavam um pacote como o nosso no butsudan de casa, colocavam o incenso e logo se sentavam ao redor da mesa para compartilhar um tempinho de conversa e comida, minhas primas e eu servíamos os convidados e aproveitávamos para comer junto.

Como minha família não tinha carro, não costumávamos visitar os parentes, o que significava que as minhas chances de receber otoshidama eram muito pequenas, mesmo assim, aqueles primos que sabiam que nós não íamos a nenhum lugar, me davam o envelope branco com detalhes coloridos, ali dentro estava o otoshidama, o dinheirinho de ano novo para as crianças, que no caso era eu!

Acredito que por isso sempre gostei das festas de fim de ano, cozinhar junto com toda a família enquanto a velharada fofocava sobre a vida, as primas e eu roubando um pouco de recheio ou um pedaço de algo, se sujar toda de farinha enquanto fazia moti, ver como os yakimanju cresciam no forno. Eu adorava receber os parentes que nem sabia quem eram e ver como nós nos reuníamos todos ao redor de uma comida tão típica e tão atípica, entre comidas japonesas e brasileiras, não era uma tradição completamente japonesa, mas era a tradição que a minha família criou.

Hoje em dia já não estou mais no Brasil, já não ajudo a fazer mil e uma comidas japonesas entre coxinhas e bolinhas de queijo, mas sinto falta das risadas da minha avó entre as das velharadas e as palavras em uchinaguchi. Poucos parentes continuam visitando a nossa casa, cada vez menos, uma tradição que fomos perdendo com o tempo, muitas das “tias” já não estão com a gente e algumas receitas foram perdidas. Nunca comi um manju ou yakimanju como os que fazíamos em casa.

Agora, em outro país, sinto as festividades um pouco tristes em comparação à toda minha infância e adolescência. Hoje estamos todos na mesma cozinha, porém cada um cozinhando uma coisa diferente quase sem trocar uma palavra, não escuto nenhuma risada, roubar um pouco do recheio de algo é um ultraje, quase um crime. Uma salada, um churrasco, algo fácil para fazer o mais rápido possível para “sacarlo de encima”, uma salada de frutas... Muitas vezes, eu sozinha preparando algo.

E o mais louco de tudo é que sinto essa mesma sensação de quando era criança quando nos juntamos com meus amigos à preparar algo juntos, as risadas, as fofocas, uma mistura de palavras em espanhol, português e nos arriscamos até algumas em japonês. Fazendo comidas brasileiras, argentinas, peruanas, japonesas... Talvez seja a hora de fazer minhas próprias tradições com a família que escolhi.


P.S.: vocês viram que na foto do post tem franguinho, inarizushi, coxinha, delícia de abacaxi, bolinho de coco e fanta laranja? XD

 

 

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2 comments

  1. Não importa quais outras tradições existem ali no meio, a Fanta Laranja era indispensável nas celebrações brasileiras dos anos 90 e início dos anos 2000...

    Ai, Ayumi, tá difícil pra mim comentar nesse post porque até chorei - me emocionei de verdade imaginando sua família vivendo tudo isso, lembrando de como minha família viveu essa época quando era unida, também. Obrigada por compartilhar - e feliz 2024!

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    1. É difícil mesmo, eu até chorei enquanto escrevia lembrando de tanta coisa bonita que passei e agora é tudo muito diferente, mas é aquilo... vamos crescendo, coisas vão mudando e chega a hora da gente criar novas tradições e novas memórias ♥

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