Subi correndo o corredor de casa com dois cachorros ao meu encalço, tomando muito cuidado para não tropeçar ou cair, já que o chão e as paredes eram super ásperas.
Cimento
puro por debaixo dos meus chinelos havaianas cor de rosa.
O cabelo armado,
sem pentear, em um rabo de cavalo balançava demostrando o esforço daquela
pequena subida inclinada. Abri o portão que separava a casa de cima da casa de
baixo. Passei pelo quintal da frente já escutando as vozes da velharada.
A última semana
do ano era sempre assim, minha vó, mais as cunhadas, minha tia, primas da minha
mãe e minhas primas nos juntávamos para cozinhar e deixar tudo preparado para o
ano novo. Era um barulho gostoso entre palavras ditas em português no meio do
uchinaguchi ao qual eu não entendia.
E ali,
todas juntas, fazíamos massas e recheios, nada de comprar já pronto ou à metade
do caminho. Lembro das tardes que moía os feijões vermelhos
azuki ou o arroz para fazer moti; e como trocava de uma mão à outra quando me cansava
de girar a manivela do moedor.
Adorava
fazer manju e yakimanju com o selinho em formato de folha. Lembro de como dizia
que gostava muito mais de manju branco ao manju que ia ao forno, e sentia que o yakimanju era perfeito para ser comido enquanto jogava the sims no computador com um chá
mate leão do lado.
Yakimanju |
Anos depois, a família nova da argentina ficou impressionada com a minha capacidade de moldar facilmente os manjus em seu formato, além da rapidez. A experiência é de anos... só não sei quando exatamente comecei a ajudar todo ano novo, é uma daquelas memórias tão antigas que você só sente que sempre fez isso, ou que já nasceu fazendo isso desde que se lembra da sua própria existência.
Não lembro
de ajudar a fazer oniguiris, mas sei que todas as outras “tias” faziam, assim
como os inarizushis que sempre estavam presentes na nossa mesa. Como eu amava e
ainda amo inarizushi!
E não era
só comida japonesa que fazíamos para passar o ano novo, minha vó sempre foi
responsável por fazer as coxinhas e as bolinhas de queijo, ainda hoje sinto que
nenhuma bolinha de queijo se compara com a dela. Eu sempre ajudava a rechear, além de comer os queijos que sobravam. Também fazíamos bolinho de
coco, delícia de abacaxi, gelatina colorida...
Com minha tia criamos a tradição de fazer pavê de maracujá, uma receita que, se não me engano, ela tirou de uma revista (quando ainda guardávamos recortes de revistas com receitas interessantes). Sempre quando posso quero levar essa tradição, já fiz pavê de maracujá no Brasil, no Japão e na Argentina.
Às vezes
tínhamos carne ou frango na mesa, mas eu lembro mais de toda essa mistura de coxinha
com inarizushi, bolinha de queijo e sushi, mas não esses suhis elaborados com mil
coisas dentro, era algo super simples, cenoura, pepino e ovo, não era necessário
mais que isso. E salada... não lembro de ter comido muita salada, mas sim
tínhamos salada russa todos os anos, ou quase todos...
Na noite de
ano novo, nós nos reuníamos vestidos de branco e comíamos. Só que, antes de
comer, tínhamos um pratinho pequeno com umas tiras de bacon colocadas como raios
de sol (que só depois eu fui descobrir que era bacon, porque em casa não comíamos)
e no meio um punhadinho de sal, nós pegávamos uma tira de bacon fininha e
pequena, colocávamos a pontinha no sal e comíamos, só aí podíamos tocar no
restante da comida. Não lembro de brindar ou de bebidas alcóolicas sobre à
mesa, mas lembro de ter muita Fanta Laranja e Coca-Cola. Também tínhamos
algumas outras tradições de ano novo, como comer romã e guardar algumas
sementes na carteira, minha tia com minha prima comiam uvas enquanto pulavam de
um pé só...
Ficávamos
acordados até depois da meia-noite e íamos dormir, já que no dia seguinte
receberíamos os parentes.
Só depois
de muito tempo fui entender que era uma tradição japonesa visitar os parentes
no dia primeiro, pensava que todas as famílias faziam isso. Nessa mesma última
semana do ano, fazíamos vários pacotes de “presente” para entregar aos
parentes, era sempre algo mais relacionado à comida não perecível: café, arroz,
feijão... às vezes havia coisas como alga nori, caixa de chocolate garoto ou
lacta para as famílias que tinham crianças. Eu e minha prima éramos as
responsáveis por entregar esse pacote.
Os parentes
vinham, alguns ficavam por horas e horas, e outros faziam igual visita de
médico, mas sempre deixavam um pacote como o nosso no butsudan de casa,
colocavam o incenso e logo se sentavam ao redor da mesa para compartilhar um
tempinho de conversa e comida, minhas primas e eu servíamos os convidados e
aproveitávamos para comer junto.
Como minha
família não tinha carro, não costumávamos visitar os parentes, o que
significava que as minhas chances de receber otoshidama eram muito pequenas, mesmo
assim, aqueles primos que sabiam que nós não íamos a nenhum lugar, me davam o
envelope branco com detalhes coloridos, ali dentro estava o otoshidama, o
dinheirinho de ano novo para as crianças, que no caso era eu!
Acredito que por isso sempre gostei das festas de fim de ano, cozinhar junto com toda a família enquanto a velharada fofocava sobre a vida, as primas e eu roubando um pouco de recheio ou um pedaço de algo, se sujar toda de farinha enquanto fazia moti, ver como os yakimanju cresciam no forno. Eu adorava receber os parentes que nem sabia quem eram e ver como nós nos reuníamos todos ao redor de uma comida tão típica e tão atípica, entre comidas japonesas e brasileiras, não era uma tradição completamente japonesa, mas era a tradição que a minha família criou.
Hoje em dia
já não estou mais no Brasil, já não ajudo a fazer mil e uma comidas japonesas
entre coxinhas e bolinhas de queijo, mas sinto falta das risadas da minha avó
entre as das velharadas e as palavras em uchinaguchi. Poucos parentes continuam
visitando a nossa casa, cada vez menos, uma tradição que fomos perdendo com o
tempo, muitas das “tias” já não estão com a gente e algumas receitas foram
perdidas. Nunca comi um manju ou yakimanju como os que fazíamos em casa.
Agora, em
outro país, sinto as festividades um pouco tristes em comparação à toda minha
infância e adolescência. Hoje estamos todos na mesma cozinha, porém cada um
cozinhando uma coisa diferente quase sem trocar uma palavra, não escuto nenhuma
risada, roubar um pouco do recheio de algo é um ultraje, quase um crime. Uma
salada, um churrasco, algo fácil para fazer o mais rápido possível para “sacarlo
de encima”, uma salada de frutas... Muitas vezes, eu sozinha preparando algo.
E o mais
louco de tudo é que sinto essa mesma sensação de quando era criança quando nos
juntamos com meus amigos à preparar algo juntos, as risadas, as fofocas, uma
mistura de palavras em espanhol, português e nos arriscamos até algumas em japonês.
Fazendo comidas brasileiras, argentinas, peruanas, japonesas... Talvez seja a
hora de fazer minhas próprias tradições com a família que escolhi.
P.S.: vocês viram que na foto do post tem franguinho, inarizushi, coxinha, delícia de abacaxi, bolinho de coco e fanta laranja? XD