Imagem por bildgebende_Momente sob licença Creative Commons. |
Antes
do mundo inteiro colapsar por conta do Corona Vírus e antes mesmo de eu ter
terminado com o meu ex (fato que parece ter acontecido há décadas atrás), eu
vivia em um apartamento em Belgrano, logo à frente de casa se encontrava uma
sorveteria e, atravessando a rua, havia um “chino”
(nome que os argentinos dão aos mercadinhos populares de bairro cujos donos são
de descendência chinesa/chineses).
Nesse
mesmo mercado, em um cantinho à esquerda, logo na entrada e atrás de três
geladeiras com refrigerantes e bebidas, estava a verdulería do José.
Ele
era um senhor de entre quarenta e tantos ou cinquenta anos aproximadamente,
pele escura com um tom avermelhado, expressões faciais bem marcadas e rosto
angular. Costumava falar com uma postura mais encurvada, mas se movia de forma
ágil, como se tivesse uns vinte anos de idade e, assim como eu, era um
estrangeiro na terra dos hermanos.
Lembro-me
da primeira vez que o vi. Nunca gostei muito de ir às verdulerías daqui, eles não deixavam você escolher ou sequer tocar
nas frutas, também costumavam estar sempre de mau humor. Por esses motivos,
estava com um pé atrás, mas já havia acabado de comprar no mercadinho e não
iria a outro lugar só para comprar uma fruta. O que custava contornar as
geladeiras e ir falar com ele?
Me
aproximei cautelosa e o cumprimentei com um “buenas
tardes, ¿cómo va?”, ele me respondeu sorridente e logo tomei confiança, era
muito simpático, me mostrava as frutas e verduras, me deixava tocá-las. Voltei
mais algumas vezes e resolvi sempre ir ali, ele havia conseguido uma cliente
fiel.
E
como esquecer do “buenas tardes,
señorita” ou a maneira como ele juntava as mãos e movia a cabeça para o
lado quando dizia “señorita”?
Não
demorou muito para ele fazer a pergunta que todos faziam em algum momento, quando falavam comigo por muito tempo:
—
Desculpa, mas de onde a senhorita é? — Abri um sorriso e não hesitei duas vezes
em responder.
—
Eu sou brasileira.
—
Ah, claro! Agora tudo faz sentido. — Eu, curiosa, perguntei o motivo. — É que a
senhorita fala tão suave, tranquila e está sempre sorridente, diferente das
argentinas.
Então
conversamos sobre diferenças culturais, descobri que ele era peruano e que
havia vindo com parte da família para a Argentina. Comentei com ele sobre as
feiras do Brasil, sobre as frutas, o clima, as pessoas... Eram conversas
simples sobre a vida, que alegravam o dia com aquele toque de leveza e
simplicidade.
Quando
eu ficava muito tempo sem ir, ele até brincava: “hoje vai chover” ou dizia “a
senhorita precisa comer mais frutas/verduras, faz bem para a saúde”.
Um
dia ele me comentou algo que o meu ex já havia comentado, não exatamente com as
mesmas palavras. Ele disse que se notava que eu era uma pessoa boa, que tinha
uma alma pura e que era possível perceber só pela maneira que eu falava. Fiquei
curiosa e entramos em uma conversa sobre pessoas julgadoras, preconceituosa e
também sobre status.
Ele
contou que quando era pequeno, era o melhor aluno da sala, cresceu e, por
questões da vida, não pôde fazer faculdade, enquanto um dos seus amigos, que era
o pior da sala, era advogado e quando se encontravam, o tal advogado
perguntava: “o que aconteceu com você?”; e ele se sentia um pouco sentido, mas
tinha orgulho de ter um trabalho digno.
Lembro
que falei para ele que ser mais inteligente na escola não define o nosso futuro
e cada um tem uma trajetória de vida diferente, oportunidades diferentes. O
amigo dele não teve que deixar os estudos para ajudar a família a ter o que
comer, isso não significa que o José seja pior por não ter um diploma pendurado
na parede.
Falei para ele que todos somos seres humanos iguais, às vezes a vida não proporciona
o que queríamos, mas temos que nos orgulhar do que temos e principalmente procurar
ser feliz, já que a vida passa muito rápido.
Parando
para pensar nas nossas conversas, posso ver o quanto a sua postura mudou ao
falar comigo, antes ele se apresentava mais encurvado, como um gesto de inferioridade,
agora ele já tinha a postura mais confiante e firme. Conversávamos sobre coisas
da vida, trocávamos dicas de como ver qual fruta/verdura estava melhor, ele me
contava sobre a sua rotina de acordar cedo e escolher as melhores frutas e
verduras para trazer ao “chino”, me
cumprimentava sempre com um sorriso no rosto.
Até
chegou a dizer que, sempre que falava comigo, o seu dia se iluminava, mal sabia
ele que eu também voltava para casa renovada depois de um dia de trabalho, a
conversa era tão leve, tão tranquila, sem pretensões ou interesses, era algo
tão inocente. Era muito interessante ver
a visão de uma pessoa tão vivida como a dele. E é engraçado como, muitas vezes,
a gente passa batido pelas pessoas sem imaginar a bagagem de cada um, até hoje
não entendo como muitas das clientes dele nem sequer o cumprimentavam ou eram grosseiras,
como se ele não entendesse nada da vida ou fosse um escravo delas ("me dá isso, aquilo, e aquele outro, pronto, tchau").
O
meu ex brincava dizendo que tinha que tomar cuidado se não o José me roubaria
dele, eu só ria quando ele falava isso. Lembro que quando terminamos e eu tive
que voltar a viver na residência universitária, uma das coisas que mais
sentiria falta era das conversas filosóficas com o José, mas a vida às vezes
tem dessas coisas, as pessoas vão e vêm, algumas deixam marcas e outras não. Uma vez ele até havia perguntado se o meu ex me tratava bem, eu não havia entendido aquela pergunta, mas talvez ele, com toda a sensibilidade e
empatia que tinha, já sabia o que estava por vir.
As
últimas vezes que fui visitar a minha gata, pensei em passar ali, cumprimenta-lo
e conversar sobre a vida, mas algo dentro de mim me impediu, talvez quisesse
que ele se lembrasse de mim sempre sorridente e não quebrada como estava.
E
ontem, abrindo uma fatura para pagar, vi o meu endereço antigo. Só esse fato me
transportou para aquela rotina de uma outra vida. A minha gata me
cumprimentando ao chegar em casa, a rua tranquila, a praça cheia de cachorros,
a lojinha do lado de casa onde eu comprava frios, a sorveteria que tinha
promoção toda terça-feira e o “chino”. Fui
passando mentalmente por cada lugar, por cada pessoa e me perguntei: como será
que está o José com essa pandemia? Será que a sua família está bem? O seu
sobrinho, o cachorro... Espero que ele tenha tido condições de ficar em casa,
afinal, ele pode estar no grupo de risco. Será que ele está conseguindo
contornar a inflação que aumenta todo dia?
É
curioso como um simples dado pode trazer tantas memórias e como a pandemia
parece separar duas vidas diferentes. No final do dia, espero que todos estejam
bem e que algum dia volte a escutar: “buenas
tardes, señorita” e filosofar sobre a vida.
Vem conhecer a lista dos blogs participantes.
Adriel Christian – Não me Venha Com Desculpa
Luly Lage - Sweet Luly
Fernanda Rodrigues - Algumas observações
Fernanda N – Confabulando
Carol justo - Justo eu
Camila Tuan - Camila por Aí
Ane Venâncio - Profano Feminino
Aline Codonho - Inventando assunto
Thami Sgalbieiro – Like Paradise
Mariana Velloso – Tô Pronta!